terça-feira, 19 de maio de 2009

O PACIENTE E O PSICANALISTA

UM SUJEITO ENTRA MEIO ATORDOADO NO CONSULTÓRIO.

PACIENTE - Com licença...?
PSICANALISTA - Pois não...?
PACIENTE - Olá... Bom dia... Eu sou o Emílio... estava com consulta marcada para as nove, mas acabei me atrasando...
PSICANALISTA - Quarenta minutos...
PACIENTE - Pois é, desculpe-me... alguns imprevistos... a família, o trânsito, o elevador, enfim...
PSICANALISTA - Tudo bem, tenha a bondade. (indica-lhe o divã)
PACIENTE - Obrigado! (caminhando até o divã) Não sei se fiz mal em ter entrado direto. Não vi ninguém na ante-sala, já estava atrasado...
PSICANALISTA - Não tem importância. Queira deitar-se que o senhor já vai ser atendido.
PACIENTE - Obrigado, doutor Herculano. Quando o senhor quiser.

O “PSICANALISTA", VESTE UM JALECO E VOLTA-SE PARA O PACIENTE QUE JÁ SE ENCONTRA DEITADO.

PSICANALISTA - O que o trás aqui, Emílio?
PACIENTE - Problemas...
PSICANALISTA - Naturalmente... mas quais?
PACIENTE - Não sei bem... é tão difícil falarmos de nós mesmos...
PSICANALISTA - Ótimo. Então fique calado. Esta é a maneira mais fácil que eu tenho de ganhar dinheiro.
PACIENTE - Crise de identidade!
PSICANALISTA - Por quê?
PACIENTE - Não sei...
PSICANALISTA - Não sabe...? Só isso?
PACIENTE - Sim... não sei...
PSICANALISTA - Entendo... aqui é comum chegar pacientes com crise de identidade. Só ontem vieram três.

PACIENTE - Três?
PSICANALISTA - Três! O primeiro jurava que era um passarinho. Quando eu fiz com que ele pensasse diferente ele foi embora voando pela janela; já o segundo se dizia uma lâmpada, veja só quanta tolice... Por fim também foi embora me deixando no escuro...

O PACIENTE OUVE TUDO COM ESTRANHEZA.

PACIENTE - E o terceiro?
PSICANALISTA - Bem, o terceiro se dizia invisível. Pra lhe dizer a verdade eu nem vi se ele veio mesmo.
PACIENTE - Ah sim!
PSICANALISTA - E você? Que tipo de crise tem?

O PACIENTE INCLINA-SE NO DIVÃ, OLHA NOS OLHOS DO PSICANALISTA E RESPONDE COM A VOZ FIRME E PREOCUPADA.

PACIENTE - Doutor, pra mim eu sou um ser-humano!
PSICANALISTA - (surpreso) O que???
PACIENTE - O que o senhor ouviu, doutor Herculano. Pra mim, eu sou um ser-humano.
PSICANALISTA - Mas como pode isso!?
PACIENTE - Pois é, não sei...
PSICANALISTA - (pensativo) Há quanto tempo você tem essa crise?
PACIENTE - Não sei exatamente, faz tempo. Pra lhe dizer a verdade acho que nunca deixei de tê-la.
PSICANALISTA - Você já procurou algum psicanalista antes?
PACIENTE - Já. Alguns muito bons por sinal.
PSICANALISTA - Oh, por favor, depois deixe-me o telefone de um deles. Preciso muito ir a um.
PACIENTE - O senhor...!? Está bem...
PSICANALISTA - Continua.
PACIENTE - Bem, alguns deles me disseram que talvez pudesse ser algum trauma de infância.
PSICANALISTA - É natural.
PACIENTE - O senhor também acha?
PSICANALISTA - Eu acho que é natural que se sinta um ser-humano enquanto criança.
PACIENTE - Por que “enquanto criança”?
PSICANALISTA - Ora, digamos que os valores, os conceitos e as exigências sociais não tenham ainda corrompido a natureza humana. “Deixai vir a mim as criancinhas...” diz a voz da sabedoria.
PACIENTE - Então o senhor acha que basta atingir a idade adulta e acabou-se o ser-humano?
PSICANALISTA - Não diria exatamente isso. Eu bem sei que existem alguns exemplares em fase adulta por aí. Sim, existem! Mas não esses que se consomem tanto com o dia-a-dia, com o trânsito, com o elevador... coisas do gênero, entende?
PACIENTE - Ora, mas eu conservo ainda muita coisa da minha infância!
PSICANALISTA - Acredito. Aliás, você tem mesmo um jeitão meio assim de débil mental. Diria até que um perfeito demente; não um ser-humano.
PACIENTE - Generoso o senhor...
PSICANALISTA - Fique à vontade.
PACIENTE - Certamente eu ficaria mais à vontade se me fosse dito o por quê eu não posso me considerar um ser-humano!
PSICANALISTA - Eu não disse isso.
PACIENTE - O que disse então?
PSICANALISTA - Que não acredito que você seja.
PACIENTE - Até aí eu fico na mesma. Tem que haver alguma explicação!
PSICANALISTA - Algumas evidências...
PACIENTE - Por exemplo?
PSICANALISTA - O seu jeito de se vestir, de se comportar...
PACIENTE - E o que tem de errado com a minha roupa?
PSICANALISTA - Você tem pijama?
PACIENTE - Tenho.
PSICANALISTA - Por que não veio com ele?
PACIENTE - Pra cá?
PSICANALISTA - Isso! Hoje está calor. Acho que o pijama iria te deixar mais à vontade com o nosso clima tropical do que esse terno europeu que te empacota.
PACIENTE - Seria no mínimo ridículo eu vir andando de pijama pelo meio da rua.
PSICANALISTA - Portanto: “Deixai vir a mim as criancinhas...” só elas andam decentemente nuas sem se acharem ridículas por isso.
PACIENTE - Ah! Então deveria eu também ter que andar nu pra me considerar humano?PSICANALISTA - Talvez não de roupas, mas de valores.
PACIENTE - Bem, mas ao que me parece, o senhor também está um tanto quanto empacotado.
PSICANALISTA - Sim, mas não fui eu quem chegou aqui se considerando um ser-humano. Afinal de contas eu passo horas e mais horas trancado aqui dentro, mal me alimento, mal me divirto, durmo pouco, me preocupo com o horário, com as contas a pagar, etc. etc e etc... Só não cometo a asneira de me considerar um ser-humano.
PACIENTE - Mas eu gosto do que faço.
PSICANALISTA - Assim como gosta da roupa que usa. Só não creio que se tivesse nascido na Índia, por exemplo, iria apreciá-la da mesma maneira. Prefiro acreditar que o gosto que eu tenho hoje não é exatamente meu, mas sim que vem sendo preparado ao longo de algum tempo para que eu goste dele.
PACIENTE - É uma questão de cultura.
PSICANALISTA - E de domínio, e de exploração, e de manipulação...
PACIENTE - Mas não será por isso que eu irei deixar de me considerar um ser-humano.
PSICANALISTA - Essa é apenas uma evidência. Existem outras.
PACIENTE - Por exemplo...?
PSICANALISTA - O simples fato de você estar aqui.
PACIENTE - E o que tem demais nisso?
PSICANALISTA - Suponho que você esteja aqui porque acredita, de uma forma ou de outra, que eu tenha condições de curá-lo, de restaurá-lo, de melhorar a sua qualidade de vida, não? Caso contrário, não teria vindo.
PACIENTE - Talvez.
PSICANALISTA - E com isso você despreza o seu próprio poder de autodeterminação física, mental e espiritual para atribuí-lo a um psicanalista que você sequer viu antes, tamanha é a descrença que você tem em si mesmo. Eu não creio que um ser-humano agisse dessa forma.
PACIENTE - Ora! Mas todas as pessoas que vêm aqui não pensam da mesma maneira?PSICANALISTA - Pode ser, mas nenhuma delas chegam aqui se dizendo seres-humanos. Já lhe disse que só ontem vieram três: o primeiro, um passarinho; o segundo, uma lâmpada e o terceiro, invisível. E digo-lhe agora que se você não adquirir a liberdade de um pássaro e não tiver a mente iluminada como uma lâmpada, melhor lhe será que desapareça!
PACIENTE - Trágico esse discurso! Se aqui estou é porque o senhor é um psicanalista.
PSICANALISTA - Você faz idéia de quantos psicanalistas já tentaram ou cometeram o suicídio?

O PACIENTE EMUDECE. O PSICANALISTA DÁ AS COSTAS, CAMINHA PENSATIVO E BRUSCAMENTE VOLTA-SE FALANDO EM TOM IMPERATIVO.

PSICANALISTA - (dedo em riste) Neste momento eu tenho poderes sobre você que se diz ser-humano, mas que se encontra fraco, descrente, intimidado... esperando que eu o programe; que vasculhe o seu passado, determine o seu futuro e modele a sua vida de acordo com o que eu interprete que seja o certo ou o errado! Sim! Eis aqui você me oferecendo poderes que eu nem sequer fiz forças para conquistá-los!
PACIENTE - O senhor quer que eu lhe dê agora mesmo o telefone de algum psicanalista?

O PSICANALISTA IGNORA A PROVOCAÇÃO.

PSICANALISTA - Você crê em Deus?
PACIENTE - Creio.
PSICANALISTA - Deveria então aborrecê-Lo menos.
PACIENTE - Aborrecê-Lo menos?
PSICANALISTA - Claro. Se o ser-humano foi criado à imagem e semelhança de Deus e se você, do jeito que se encontra, se considera um ser-humano, certamente O estará aborrecendo. Ao passo em que, com certeza, Ele dirá: “O que!? É esse o ser-humano livre, tranqüilo e seguro que eu criei e que agora pra se sentir bem é necessário que freqüente consultórios de análise, que tenha status, que minta a idade...? Oh, não! Certamente falsificaram a minha obra-prima”!
PACIENTE - Interessante! Deve ser por isso que a sala de espera estava tão vazia quando eu cheguei.
PSICANALISTA - Vai ver o paciente invisível estava lá e você não tenha percebido.
PACIENTE - Pelo visto, devo ficar proibido de tudo. Espero que ao menos não me proibia de respirar.
PSICANALISTA - Não chegaria a tanto, mas procure respirar um pouco mais devagar.

O PACIENTE OBSERVA INDIGNADO O PSICANALISTA ENQUANTO ESTE PARECE DIVAGAR LANÇANDO AS MÃOS PARA O ALTO.

PSICANALISTA - O ser-humano é ousado por natureza! Busca conhecer o escuro para iluminá-lo; o vazio para preenchê-lo; o distante para aproximá-lo... e não viver de maneira medíocre; casando-se, tendo filhos, criando-os e esperando a morte chegar. Passando, enfim, para prole a herança do mesmo ritual ordinário. Não! Ou quente ou frio porque os mornos serão vomitados! Navegar é mesmo preciso! Navegar... navegar... navegar...
PACIENTE - Daria uma bela homilia!
PSICANALISTA – Responda-me uma coisa: você caga?
PACIENTE - O que???
PSICANALISTA - Eu perguntei se você caga, defeca, se borra, essas coisas...

INDIGNADO, O PACIENTE ERGUE-SE DO DIVÃ.

PACIENTE - Ignoro o sentido de sua pergunta!
PSICANALISTA - É natural. Mas se eu lhe perguntasse qual o perfume que usa, certamente se envaideceria para me dizer o nome de algum precioso perfume francês; como lhe perguntei se caga, causei-lhe constrangimento e indignação. É... eu logo percebi que alguma coisa não me cheirava mesmo muito bem. Aliás, sabe aquelas elegantes senhoras que encantam e se encantam com a alta sociedade; que exibem nas roupas etiquetas caríssimas; que usam jóias valiosíssimas; que nos policiam nos lazeres e nas cerimônias? Sabe? Pois é, elas fazem de um tudo pra nós pensarmos que elas não cagam. Mas elas também cagam, sabia?
PACIENTE - Pra falar com sinceridade, acho que o senhor precisa mesmo ir urgentemente a um psicanalista.
PSICANALISTA - É claro que preciso! Passei a vida inteira acreditando em castelos de areia! Acreditei nos meus pais quando me aconselharam a estudar, a trabalhar e a ter um diploma para que eu pudesse ser alguém na vida, como se antes, de fato, eu nada fosse; acreditei nos religiosos quando disseram que eu nasci do pecado a fim de que eu vivesse me condenando a vida inteira; acreditei na classe política que sempre me reservou ao comodismo de esperar por feitos que eu mesmo poderia ter realizado; acreditei também no “aqui se faz, aqui se paga” onde me vejo pagando justamente um preço por ter cometido o mal de acreditar... e agora, como você, acredito que preciso ir a um psicanalista.
PACIENTE - (resoluto) Pois então, procure o senhor o seu porque eu irei procurar o meu.

O PACIENTE - QUE HÁ MUITO JÁ NÃO SE ACOMODARA DEITADO - LEVANTA-SE, PEGA O PALETÓ DEIXADO NO CABIDE ENQUANTO CONTINUA A FALAR EM TOM DE DESABAFO.

PACIENTE - ... pensei que fosse chegar aqui e me sentir à vontade pra falar das coisas que me afligem e me sufocam, mas não: Tudo o que ouvi foi essa sabatina dos diabos que praticamente me lançou na porta de entrada do inferno. Ora, psicanálise parecida com essa a minha sogra costuma fazer todos os dias, de graça e sem hora marcada.

O PACIENTE ACABA DE SE ARRUMAR E, MEIO AO EMBARAÇO, ARRISCA UM OLHAR PARA O PSICANALISTA.

PACIENTE - Quanto é mesmo a consulta?
PSICANALISTA – Antes, vale lembrar que a iniciativa e o protesto são atitudes nobres de um ser-humano enquanto a fuga é um grave defeito.
PACIENTE - (indiferente) Quanto é mesmo a consulta?
PSICANALISTA - Resolva com o doutor Herculano.
PACIENTE - Com quem?
PSICANALISTA - Com o doutor Herculano. Como você se atrasou um pouco, ele foi lá dentro resolver alguns problemas e me disse para que eu o chamasse caso você chegasse. Foi quando você entrou atabalhoadamente consultório adentro me chamando de doutor. Então eu - o atendente - resolvi consultá-lo.
PACIENTE - O que!? Seu moleque...!
ATENDENTE - Moleque? Minutos atrás eu estava sendo tratado por doutor...!
PACIENTE - Eu vou denunciar isso ao doutor Herculano!
ATENDENTE - Ótimo. Se demitido, eu ponho a minha própria consulta em prática. Espere que eu vou chamá-lo. (pega o fone e começa a discar)
PACIENTE - (súbito) Não! Não precisa chamá-lo... eu vou-me embora! (à porta) Quanto é mesmo que eu lhe devo?
ATENDENTE - Quem sabe, a sua liberdade?

O PACIENTE AGRADECE TIMIDAMENTE E SAI. OUVE-SE LATIDOS EM OFF E LOGO EM SEGUIDA REABRE A PORTA, MEIO AMEDRONTADO.

PACIENTE - Estou ouvindo latidos de cachorro no corredor! Acaso tem algum cachorro por aqui?
ATENDENTE - Não se preocupe. É o próximo paciente que já está chegando.

(Reinaldo Araujo -trabalho apresentado a disciplina de literatura dramática da Universidade Federal do Paraná. No curso de Educação Artística com habilitação em Artes Cenicas, campus FAP.Em dezembro de 2008.)


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